Por toda riqueza de sua contribuição, a Escola Austríaca de Economia é considerada uma das mais importantes correntes da ciência mundial. Impulsionada principalmente por Ludwig Von Mises na primeira metade do século XX, tal movimento notabilizou-se por aproximar o pensamento teórico econômico da realidade humana, identificando as contribuições individuais e seus impactos nas relações financeiras de um determinado sistema.

Inaugurando uma noção crítica, a Escola fugiu do viés comunitarista defendido por Karl Marx em Das Kapital e fez seu movimento intelectual na direção do liberalismo, a fim de construir um modelo de cálculo econômico capaz de se sustentar frente à realidade. Para tanto, desenvolveu uma compreensão científica ampla levando em conta a mensuração dos efeitos das ações individuais (praxeologia) e dos impactos de ciclos produtivos, ambos fatores negligenciados pelo viés socialista.

Assim, como bem destaca Ubiratan Iorio, pode-se sintetizar o pensamento austríaco pela constatação de que a economia é “ação humana ao longo do tempo, nos mercados, sob condições de incerteza genuínas”[1]. Pela primeira vez, o indivíduo, suas vontades e vícios foram efetivamente inseridos no sistema como pontos chave para a compreensão das relações socioeconômicas. Friedrich Hayek continuou a desenvolver tal corrente, se transformando num dos mais proeminentes pensadores do século XX. Um dos mais relevantes acréscimos de sua autoria à teoria austríaca foi justamente o estudo das ações humanas em relação aos mercados financeiros, e como eles ambos se constituem numa máquina capaz de se estabelecer retroalimentar na geração de recursos.

Em paralelo, a história dos mercados de valores mobiliários se confunde com a própria consolidação do desenvolvimento capitalista. Criada em 1602 com recursos decorrentes de associações de capitais ligadas à Companhia Holandesa das Índias Orientais, a Amsterdam Stock Exchange foi a primeira experiência mundial de uma bolsa de valores. Com o tempo e o avanço das revoluções industriais que se sucederam, outros países criaram suas próprias bases de operações financeiras, ofertando partes de empresas por meio de títulos participação, que evoluíram ao que se conhece hoje como “ações” na definição da Lei 6.404/76. De maneira inédita, permitiu-se a população firmar sociedade com grandes empreendimentos, criando um modelo capaz de gerar financiamento à atividade empresária por meio do fluxo constante de recursos.

Em seu trabalho, Hayek (1941) deu grande importância a tal movimento. Segundo o autor, o mercado de capitais permite que recursos potenciais não utilizados possam ser empregados para produzir retorno útil por meios indiretos. Isso ocorre uma vez que a maior capacidade produtiva da máquina deriva dos recursos latentes (cujo uso seria inviável) quando atraídos para o processo de produção. Dessa forma, o investimento de capital “criaria” recursos econômicos a partir de recursos não-econômicos, gerando impulso para a atividade comercial[2]. No cenário pós-moderno, tal estímulo se mostrou essencial para o desenvolvimento empresarial e se tornou pilar do sistema capitalista, razão pela qual muito se debate sobre a modernização do Sistema Financeiro Nacional.

Como ponto central da discussão, o Mercado de Valores Mobiliários, como cunhado pela Lei 6.385/76, encontra respaldo legislativo amplo no Ordenamento Jurídico nacional, sendo regido também por dispositivos específicos da Lei 6.404/76 e por Instruções Normativas da CVM, agência de controle inspirada na experiência norte-americana da SEC (Securities and Exchange Commission). Assim, é possível perceber que tal mecanismo financeiro possui uma relação epistemológica íntima com o Direito, tanto em sua constituição quanto em sua regulamentação. É, inclusive, do diálogo da doutrina econômica com a hermenêutica jurídica que é possível se extrair a sua pouca conhecida função social.

Como se depreende da definição de empresa dada pelo Código Civil de 2002 e das garantias aos acionistas elencadas pela Lei 6.404/76, é justo afirmar que o objetivo da atividade econômica é gerar lucro e o do acionista é recebê-lo pelo pagamento de dividendos. Assim, as bolsas de valores não só cumprem o papel de viabilizar um maior fluxo de capital para o financiamento de empresas, como também possibilitam a democratização dos seus resultados econômicos e sua percepção pelo público geral, constituindo-se como verdadeiro instrumento de distribuição de riquezas.

Nesse sentido, os impactos de tal função social, quando decorrentes de um establishment bem estruturado, são capazes de fomentar a produção e o consumo, a geração de novos recursos latentes e a sua realocação na máquina financeira. Tomando como o exemplo o mercado norte-americano, as 500 maiores empresas estadunidenses pagaram o recorde de 495 bilhões de dólares em dividendos aos seus acionistas no intervalo de março de 2019 ao mesmo mês de 2020[3], enquanto capitaram cerca de 63 bilhões de dólares no mesmo período por meio de IPOs[4]. Isso corresponde a mais do que sete vezes o montante levantado por emissões originárias, resultando numa geração de valor da ordem de 600%. Tal número bem retrata a mais pura essência do livre mercado, caracterizada pelo crescimento econômico seguido de uma repartição individualizada de riqueza, instrumento de democratização dos espólios capaz de conciliar o desenvolvimento empresarial com o social.

Considerando, agora, que o Mercado Financeiro brasileiro ainda está a relevante distância do seu par norte-americano, é essencial discutir modelos capazes de identificar problemas e apresentar soluções adequadas ao seu desenvolvimento. Tendo em vista que a proporção de pessoas físicas cadastradas como investidores em renda variável nos Estados Unidos é cerca de 60 vezes maior do que o observado no Brasil, fica evidente que tal discrepância está associada a um forte viés cultural de inação econômica.

Assim, seguindo a lógica praxeologista de Hayek, as ações humanas, ou a falta delas, numa sociedade que não se encontra comprometida com seu desenvolvimento empresarial é capaz de criar uma grave deficiência no seu sistema financeiro. Isso porque, além de falhar em eficientemente alocar recursos latentes não-econômicos a instituições capazes de transformá-los em elementos produtivos e fomentar a evolução empresarial, um sistema enfraquecido pelo comportamento cultural dificulta a própria realização da função social de seu mercado de valores mobiliários, o que, em última instância, prejudica o desenvolvimento social num modelo capitalista.

Nessa linha, atentando para o aspecto legal das relações financeiras, é essencial lembrar que nenhuma regulamentação precisa ser, a priori, ampla ou extremamente rígida; seu único objetivo é ser eficiente. A lei jamais deve cruzar o limite da atuação mínima necessária e passar a ser um freio cego das vontades humanas legítimas. No caso brasileiro, considerando as particularidades da realidade nacional, a regulamentação deve assumir, ainda, o papel de força motriz dos agentes econômicos individuais, valendo-se de mecanismos incentivadores para cumprir seu real propósito, contribuindo para a consolidação do verdadeiro capitalismo de livre mercado, acompanhado de prosperidade democratizada e de mecanismos de distribuição eficiente de recursos.

[1] Iorio, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e Conhecimento. São Paulo: Instituto Mises Brasil, 2011. pp.61

[2] Steedman, I. (1994) ‘On The Pure Theory of Capital by F.A. Hayek’ in Colonna, Hagmann and

Hamouda, 1994, 3-25

[3] https://www.bloomberg.com/press-releases/2020-04-09/s-p-dow-jones-indices-reports-5-5-billion-decrease-in-u-s-indicated-dividend-payments-for-q1-2020-worst-quarter-since-q1

[4] https://www.nyse.com/ipo-center/recent-ipo