Não é de hoje que a realidade metafísica desperta o interesse da sociedade. Num mundo onde quase tudo se constrói com tecnologia, buscou-se desenvolver um ambiente virtual imersivo que reproduzisse a realidade, no qual as pessoas pudessem interagir e se conectar de inúmeras formas. Hoje, é possível jogar, frequentar eventos, trabalhar, comprar, viajar e explorar o mundo sem sair do conforto de uma sala de estar, no que deram o nome de metaverso.

 

Tal realidade virtual está em constante expansão, com a estimativa de movimentar U$ 5 trilhões até 2030, segundo relatório da McKinsey & Company[1]. É claro que, para negociar tantos recursos, o metaverso exigiu a criação de mecanismos capazes de conferir segurança para as transações. Assim surgiram os non-fungible tokens (NFTs), representações de exclusividade de determinado item, os quais garantem que uma obra de arte comercializada no mundo virtual, por exemplo, seja uma criação digital única e irreproduzível.

 

Como toda inovação acompanha lacunas de entendimento e regulamentação, com o metaverso não seria diferente. Entre os embates que surgiram até então na realidade virtual, talvez os mais significativos sejam aqueles relativos à propriedade intelectual, especialmente no que tange à proteção marcária no mundo real e sua extensão para o metafísico. Isso porque, como ocorre nos sistemas de registro, a proteção de determinada marca é restrita às especificações de suas atividades. Assim, pelo menos em princípio, uma marca que produz e vende acessórios de couro no mundo real não estaria protegida no metaverso, de modo que qualquer indivíduo poderia comercializar NFTs dos seus produtos por se tratarem de objetos digitais e finalisticamente distintos, afinal, uma bolsa e uma foto de uma bolsa não são a mesma coisa.

 

É exatamente nessa interseção entre marcas registradas e o metaverso que surgiu o primeiro grande processo judicial envolvendo o assunto, no embate entre a grife francesa Hermès e o designer Mason Rothschild. No caso, Rothschild criou imagens digitais das luxuosas Birkins, bolsa da marca francesa que representa um verdadeiro ícone do mundo da moda, e comercializou por meio de NFTs que se valorizaram a cada operação. Com as incertezas inerentes a todo pioneirismo, a principal questão a ser respondida versa sobre os limites entre o artístico e a proteção de uma peça de design tão distinta e significativa na realidade virtual.

 

Para responder tal questão, Mason defende que os NFTs seriam protegidos das reivindicações de marca registrada por se tratarem de expressões criativas baseadas em sua interpretação do mundo ao seu redor. Assim, as MetaBirkins seriam uma arte com o objetivo de criticar a indústria da moda e a fabricação dos itens pela Hermès em couro animal.

 

No entanto, a resposta para tal pergunta não é tão simples e deve levar em conta diversos aspectos. Em primeiro lugar, é preciso analisar o embate à luz do mercado fashion para se ter uma compreensão profunda do que é a Birkin. Considerado um dos mais bem feitos e exclusivos do mundo, o acessório tem uma produção limitada que se traduz em escassez de oferta e filas intermináveis para compra, apresentando uma valorização monetária como qualquer outro tipo de investimento. Seu design icônico é reconhecível por qualquer pessoa que se interesse por moda, funcionando como um elemento identificativo tão ou até mais forte do que uma logomarca. Não se trata, pois, de uma simples bolsa, mas de um item que representa a própria Hermès, como uma verdadeira extensão da marca.

 

O conhecimento do mercado da moda mostra, portanto, que o caso em apreço não diz respeito à proteção de um item material puro e simples, mas de uma imagem visual que carrega de forma indissociável o nome e a história da marca. Por esse motivo, aliado à produção limitada, as Birkins carregam consigo um intangível quase que imensurável, ajudando a construir a exclusividade característica do atelier francês e se traduzindo em altos valores de mercado. Na realidade, a Hermès tem nas Birkins uma das, se não a principal forma de reconhecimento no mercado, apesar de não ser uma marca exclusiva de bolsas. Olhando pela ótica do direito brasileiro, é como dizer que as Birkins representassem um alto renome para a grife francesa, assim como o tartan bege, preto, branco e vermelho da Burburry e o solado vermelho da Louboutin.

 

Um segundo ponto importante força a análise da hipótese à luz da própria razão de ser da proteção marcária. Entre proteger os interesses do titular e coibir o desvio ilegal de clientela e o proveito econômico parasitário, a finalidade máxima do instituto é proteger os adquirentes dos produtos, uma vez que a marca registrada confere subsídios suficientes para aferir a origem e a qualidade do que os indivíduos consomem. Exatamente por isso, diversos consumidores que adquiriram as MetaBirkins alegaram ter comprado a imagem digital por acreditar estar associada à etiqueta da tão exclusiva grife francesa. Assim, a conduta de Rothschild, apesar de não violar uma marca registrada especificamente para utilização no metaverso, viola o objetivo principal de proteção aos adquirentes do produto.

 

Assim, analisando o caso sob as óticas aqui invocadas, fica claro que o designer buscou se aproveitar do prestígio e do valor carregado pelas Birkins para benefício econômico próprio. Considerando que não há qualquer distinção relevante entre a bolsa real e a imagem criada por Mason, não se vislumbra possível pensar em liberdade artística ou de criação. Na realidade, os NFTs são virtualmente cópias do design da Hermès, comercializados com base na confusão dos consumidores e com o intuito de se valer do que as Birkins realmente significam para obter ganhos financeiros vultuosos.

 

Fica claro que a interseção entre o mundo real e o metafísico não é simples, especialmente quando envolve as peculiaridades do mercado da moda. Exatamente por esse motivo, a resolução de embates envolvendo propriedade intelectual no metaverso passa por análises e conhecimentos específicos do segmento. Permitir o uso indistinto por terceiros, na realidade virtual, de marcas e designs de renome, ainda que não registrados especificamente para este fim, desvirtua a finalidade máxima da proteção marcária, além de comprometer a imagem e o espírito de empresas que passaram décadas construindo sua identidade.

[1] https://valorinveste.globo.com/mercados/internacional-e-commodities/noticia/2022/06/15/gastos-com-metaverso-podem-alcancar-us-5-trilhoes-ate-2030-estima-mckinsey.ghtml