A história da música se confunde com a própria trajetória da humanidade. Mesmo diante de diversas variações técnicas e sonoras no decorrer do tempo e ao curso de diferentes civilizações, as composições sempre compartilharam um ponto imutável. Enquanto arte, era central na construção de identidades em decorrência da universalidade eufônica, e, enquanto linguagem, consolidou-se como instrumento coletivo de expressão, dotado de relevante finalidade sociocultural.

 

A musicalidade da lira grega ditou o tom das conquistas dos deuses e da memória dos homens, perpetuando a identidade dos povos pré-romanos pela oralidade da melodia que transformava a acessibilidade à informação numa democracia extremamente restrita. Nas cidades-estados da idade média, o instrumento se consolidou como forma de construção cultural pelos cânticos religiosos que acompanharam o surgimento da fé cristã e a ascensão da igreja católica. O Renascimento do século XIV iniciou o processo de transformação da música numa frente de entretenimento. As composições clássicas iconoclastas reafirmaram a música como fim em si mesmo, desprovendo a arte de qualquer aspecto intrínseco de instrumentalização além do objetivo lírico do compositor. No Brasil, a musicalidade teve forte influência na criação cultural tradicional, seja na poesia de cordel ou nas histórias folclóricas, nas marchinhas de carnaval ou nos festivais da canção. 

 

Com o crescente desenvolvimento industrial e a rápida ascensão do capitalismo de mercado, a comercialização dos bens culturais veio como algo esperado. A explosão de popularidade de artistas nas décadas de 1950 e 1960 contribuiu para a identificação de um nicho irrestrito com inimaginável potencial de lucratividade. Anos mais tarde, a indústria musical internacional se consolida cada vez mais com uma das mais resilientes frentes do entretenimento global.

 

Assim, como tudo que atinge o patamar do sucesso e da lucratividade, as disputas envolvendo direitos autorais em obras musicais surgiram na mesma velocidade dos hits. Controversas, animosidades públicas e processos milionários se tornaram frequentes no mundo artístico, levantaram a questão de em que momento uma composição cruzaria a linha da influência e inspiração em direção ao plágio e qual seria um critério objetivo capaz de identificar tal movimento, especialmente em casos não tão óbvios. Nesse sentido, é imperioso destacar que, por mais que os direitos autorais sejam largamente protegidos, seja pela tradição saxônica do Copyright ou pela herança francesa do Droit d’auteur, nenhuma legislação logrou êxito em vislumbrar um ponto prático no processo que conferisse segurança jurídica às partes.

 

Nessa toada, segundo Henri Desbois[1], a originalidade de uma obra musical estaria localizada na sua melodia, uma vez que é em seu processo de criação que incidiria a sensibilidade e a inspiração, e não a reflexão ou comparação. Considerando que a melodia pode ser entendida, tecnicamente, como uma sequência de notas que se relacionam reciprocamente de modo a formar um todo, tal constatação bastaria para reduzir a um ponto central as discussões referentes a possíveis cópias indevidas, entendendo que duas obras só poderiam ser consideradas iguais se reproduzirem as mesmas linhas melódicas. Ocorre que a extensão dos valores monetários envolvidos em tais processos indenizatórios empurrou tal base lógica para fora dos tribunais, e o que se observa atualmente são casos recorrentes que inviabilizam a processo criativo pela consagração de normas em branco sem uma complementação efetiva.

 

Assim, litígios milionários tornaram-se parte da música Pop comercial a partir da década de 1970. Verbi gratia, em 2013, o single “Blurred Lines” de Pharrel Williams e Robin Thicke levou ao pagamento de cerca de trinta e cinco milhões de reais ao espólio de Marvin Gaye por sua semelhança com “Got to give it up”, lançada quase quarenta anos antes. Em processo similar, a banda Radiohead foi obrigada a ceder um terço de toda receita obtida com “Creep” para o conjunto The Hollies por plagio da canção “The air that I breath”. Nenhum dos casos apontados continham cópias manifestas de linhas melódicas, baseando-se apenas em aproximações inconsequentes que convenceriam alguém de que “atacar” e “acabar” poderiam serem consideradas a mesma palavra por terem cinco de seis letras em comum.

 

Isso ocorre uma vez que a música, assim como a linguagem alfabética, é constituída por “regras” eufônicas, isto é, a existência de determinadas notas que soam melhor quando tocadas sobre determinadas progressões de acordes. Isso significa que, partindo de uma escolha inicial quanto ao tom a ser utilizado na composição, tem-se um número limitado de possibilidades para a formação de uma linha melódica, uma vez que há apenas sete notas que compõem uma escala e se caracterizam como diatônicas naquela base harmônica. Assim, desde o processo inicial de criação, existe uma impossibilidade lógica de formações aleatórias, da mesma forma que não se vislumbra a criação de uma palavra de sete letras composta apenas por consoantes. Dessa forma, é relevantemente possível que dois compositores cheguem a resultados similares sem sequer ouvir a obra do outro, de forma que semelhanças não podem ser suficientes para configurar um plágio.   

 

No caso mais conhecido da música brasileira, o STJ manteve a condenação do TJRJ quanto ao plágio da canção “O Careta” de Roberto Carlos, ao entender que a mesma reproduzia os primeiros dez compassos da obra “Loucuras de Amor” de Sebastião Braga. Tal processo, iniciado em 1990, ainda sob a égide da Lei 5.988/73, antecessora da atual Lei 9.610/98, consagrou uma interessante base jurisprudencial ao adotar uma característica técnica e objetiva ao analisar a questão, atendo-se ao conceito em análise e identificando uma cópia estrutural na melodia empregada.

 

O referido precedente se mostra extremamente relevante uma vez que, considerando que o setor musical brasileiro se encontra em franca expansão, crescendo em ritmo superior à média global[2], é de se esperar que cada vez mais controvérsias milionárias sejam levadas ao judiciário nos próximos anos. Assim, fica a expectativa da observância de um sólido entendimento que protege o direito constitucional liberal de autonomia criativa e restringe a desenfreada expansão da propriedade intelectual musical, ou de uma guinada completa em direção aos julgados dos juris norte-americanos. Nesse sentido, é essencial levar à ponderação a função sociocultural da arte como bem imaterial linguístico e que, portanto, deve ser pensada com possibilidades limitadas a restrições de domínio. Além disso, levando em conta a inexistência de uma definição legislativa clara capaz de apontar aspectos objetivos na caracterização de um plágio, é fundamental que se estenda a proteção ao direito social, numa rara exceção que configura o in dubio pro reo na mesma linha do in dubio pro societate.

[1] Etudes de propriété intellectuelle, Paris, Dalloz, 1974.

[2] https://exame.com/estilo-de-vida/industria-da-musica-no-brasil-cresceu-acima-da-media-internacional/